Artigo | Bruno Gaudêncio destaca o lado intelectual do saudoso médico Severino Bezerra de Carvalho


Existe uma categoria de escritores que vivem permanentemente nas sombras, sucumbidos pela solidão intelectual. Estes “homens de letras” pouco se dão a atividade pública, participando minimamente dos círculos literários da sua época. Preferem o isolamento, “a penumbra” das leituras nos seus gabinetes repletos de livros e outros suportes impressos. Quando publicados, pouco se preocupam com a repercussão dos seus escritos e depois de anos, sem serem citados em antologias, coletâneas ou compêndios de história literária, nada se incomodam com o ostracismo literário da qual foram ou são vítimas.

Nesta categoria de escritores eu citaria como exemplo o nome do médico, poeta e romancista Severino Bezerra de Carvalho, intelectual autêntico, dono de uma sólida formação cultural e invejável capacidade de escrita. Sua produção, de pouca repercussão local, foi dedicada praticamente a dois gêneros: a poesia (principalmente o soneto) e a ficção (destaque para o romance), sobretudo escritos na década de 1960.

Ao observarmos o seu lugar no campo de produção literário paraibano e campinense durante o século XX, compreendemos claramente a sua opção pelo retraimento (principalmente durante a velhice), pela ironia e a sátira diante do mundo intelectual da qual evitava participar, ou mesmo pela quase completa indiferença as relações literárias de sua época.

Nascido em Glória de Goitá, estado de Pernambuco, em 1º de junho de 1915, Severino Bezerra de Carvalho formou-se em Medicina pela Faculdade do Recife no ano de 1936, vindo um ano depois a residir em Campina Grande, cidade onde revolucionou tanto a medicina como a cultura letrada da sua época, com métodos científicos e humanistas.

Médico reconhecido pela competência, responsabilidade e humanidade foi durante muitos anos professor e diretor da Faculdade de Medicina de Campina Grande, fundador da Sociedade Médica Campinense e também professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), hoje UFCG. O jornalista e escritor José Neumanne Pinto, na década de 1960, residia em Campina Grande, sendo militante de esquerda, e diante do contexto do golpe de 1964, salientou anos depois a força e a importância de Severino Bezerra de Carvalho diante da luta contra a perseguição aos estudantes campinenses: “A coragem de evitar que os esbirros da ditadura impedissem alunos malquistos pelo regime militar de freqüentar a Faculdade de Medicina de Campina Grande, que ele dirigia à época, é um exemplo de como age um homem de bem sob um mau governo”.

Além da colaboração na parte médica, Severino Bezerra de Carvalho deu uma inegável cooperação na área cultural de Campina Grande nos anos 1960. Fez parte da Comissão Cultural do Centenário, criado pelo prefeito Newton Rique, em 1964, formado por intelectuais campinenses, colaborando de maneira decisiva para a vida artística do município, ao lado de nomes como Elpídio de Almeida, Raymundo Asfora, José Elias Borges e Maria de Lourdes Passos, também membros da comissão.

As variadas publicações de autores campinenses realizadas pela Comissão Cultural do Centenário, ocorridas ao longo da década de 1960, são até hoje lembradas pelo significativo auxílio à produção artística e cultural da cidade de Campina Grande. Livros foram editados ou reeditados, de autores como Mauro Luna, Rubem Navarro, Félix Araújo, além dos diversos números da Revista Campinense de Cultura, marco na produção editorial da cidade. Iniciativa que se deve muito a Comissão e seus membros, entre eles, o próprio Severino Bezerra de Carvalho.

No mesmo ano da criação da Comissão Cultural do Centenário, Severino Bezerra de Carvalho escreveu em menos de 40 dias um romance polêmico e único na produção literária paraibana. Seu título? Memórias de Casmurrindo Vespa, impresso nas Oficinas de Mousinho, no Recife. O médico se utiliza do pseudônimo de Seno Becalho, mesmo trazendo na orelha um texto de Raymundo Asfora que o identifica: “Seno Becalho é abreviatura de Severino Bezerra de Carvalho, médico enraizado há muitos anos em Campina Grande, e que desde cedo, incursionou pelos campos da Filosofia e da Literatura, familiarizando se com autores clássicos e modernos. Trata-se, pois de intelectual autêntico, com profunda vivência dos problemas da arte literária, não se limitando, apenas ás atividades da clínica e da cátedra”.

O livro “Memórias de Casmurrindo Vespa” conta através dos relatos memorialísticos do personagem Casmurrindo Vespa, a experiência de um crítico mordaz da cidade que ele chama de “capital do vento”, um alusão a cidade de Campina Grande naquela década de 1960, a partir das vivências com os intelectuais do período. Em certa parte do livro temos o seguinte relato, que expressa bem o lado pungente das críticas a Campina Grande: “Aliás, essa gente só se preocupa mesmo com dinheiro, o que quer dizer automóveis, pitanças, boas mulheres, tudo com a garantia da lei e a tolerância da santa madre igreja. Não, não perigo de pedradas: a vergonha já fugiu há muitos, muitos anos”.

Mais do que criticar de forma mordaz a cidade de Campina Grande, vista como um lugar fluído, sem consistência intelectual, cheia de vícios, Severino Bezerra de Carvalho se dedica de forma extremamente pejorativa, a ironizar as práticas dos intelectuais do município da época, entre eles, o sociólogo José Lopes de Andrade, o empresário Edvaldo do Ó, o escritor Amaury Vasconcelos, o poeta Anézio Leão, o cronista Hortênsio Ribeiro, entre outros. Alguns deles recebem apelidos jocosos, a exemplo de Lopes de Andrade, chamado de Aníbio, o magnífico e Edvaldo do Ó, intitulado de Napoleão Perereca.

O lado ridículo dos intelectuais, postulando cargos e imortalidades através de associações literárias, salienta a vaidade e a prepotência de muitos destes nomes, que foram de forma impulsiva criticadas por Severino Bezerra de Carvalho. Seu olhar para o meio intelectual campinense nos parece um combate ao provincianismo e a arrogância dos muitos intelectuais vaidosos e egocêntricos. Em certo trecho temos: “a capital do vento era um paraíso de gaios enpavonados”.

Não há como deixar de destacar o nome de Aristarco Medroso, personagem que corta toda a narrativa romanesca, e que em diálogos ácidos com Casmurrindo Vespa, aumentam ainda mais o propósito de Severino Bezerra de Carvalho em ironizar a cidade de Campina Grande. Em certo diálogo Aristarco Medroso enfatiza: “o fato é que somos um povo de analfabetos. Como se não bastasse, de professores também analfabetos.”

Severino Bezerra de Carvalho, ou Seno Becalho, não poupa críticas a ninguém no campo intelectual campinense: políticos, educadores, jornalistas e religiosos, são satirizados, salientando o desdém que a cidade possuía na década de 1960, as questões mais próximas do universo artístico, literário e cultural. Aliás, se observarmos bem, esta realidade não destoa muito dos dias atuais, quando a cidade de Campina Grande vive uma interminável crise, devido às descontinuidades das ações culturais.

Um ano antes de publicar o romance Memórias de Casmurrindo Vespa, Severino Bezerra de Carvalho, utilizando-se do pseudônimo Aristarco Medroso, publicou durante três meses no jornal Diário da Borborema, uma série de sonetos satíricos sobre fatos e personagens de Campina Grande. Alguns destes poemas foram adicionados a última sessão do romance e deixam bem claro o lado sarcástico de Severino Bezerra de Carvalho diante da realidade que se apresentava no município naquele momento.
Um dos sonetos, chamado Sêde...Centenária!, Severino Bezerra de Carvalho ironiza o fato da cidade que completava em 1964 seus 100 anos de emancipação política, ainda sofria com a falta d’água e mais, com os preços abusivos impostos pela empresa mantedora da distribuição, a Sanesa:

Mais de mil e quinhentos bons cruzeiros
Por um só mês da linfa preciosa!
E a torneira... nem pinga. Não é glosa,
Sabem-no todos, sim, e são Malheiros.

Escusa-se a Sanesa; enquanto prosa,
Vai recolhendo, imp...ávida, os dinheiros.
Nem Deus tem piedade dos leiteiros:
Negou-lhes chuva. Mundo côr de rosa....

Protesta o rico. O Pobre, esse (coitado...)
Traz na cabeça um caldeirão furado,
Com três gotinhas d’agua, em passo lento.

Enfim, eu sou cristão. E, se o não fora...
Meu deus, perdão! Sanesa sofredora:
Sopra, sua, soluça...só sai vento!...

Publicado o romance em 1964, nas décadas seguintes Severino Bezerra de Carvalho se retraiu quase que completamente do cenário intelectual da cidade de Campina Grande, excetuando algumas amizades que manteve durante décadas, caso do próprio Raymundo Asfora e de Everaldo Lopes, por exemplo. Ademais, se dedicou com afinco as suas atividades de médico e professor até se aposentar, praticamente se ausentando dos debates culturais a partir da década de 1970.

Dono de um grande acervo bibliográfico, constituídos durante décadas, em várias línguas e temas, que iam da medicina, passando pela sociologia, chegando à literatura (uma das suas grandes paixões), Severino Bezerra de Carvalho foi a cada ano se isolando, optando por um recolhimento intelectual, folheando livros, observando o seu acervo de fotografias, pois praticou durante anos a arte de registrar em imagens a cidade de Campina Grande, sendo hoje um acervo dos mais ricos e valiosos sobre o município ao longo do século XX ou colecionando peixes ornamentais, outros dos seus grandes prazeres nos últimos anos de vida.

Falecido em setembro de 2011, aos 96 anos de idade, a imprensa paraibana, em especial a de Campina Grande, salientou a sua importância como médico, porém pouco destacou o “lado escritor ou intelectual” e de sua trajetória, em parte pela opção do próprio Severino Bezerra de Carvalho, em revelar timidamente esta aptidão e por optar pelas sombras de um consciente “ostracismo literário”, - espécie de exílio, que vem demarcando a sua obra até a atualidade.

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