Crônica | 'O Dia', por Alexandre Dantas


Nunca achara aquela cama tão dura antes. Sentia cada costela batendo no colchão. Ou será que suas costelas haviam ficado mais duras? Aquilo não era cômodo. Os cabelos ralos, muito brancos, quase de um azul-claro. Os olhos também pareciam estar quase azuis agora, o que, se ele mesmo tivesse percebido, acharia estranho, pois sempre foram castanhos.

Sentia aquele dia especial, sem saber explicar como, algo estranho estava para acontecer. Que acontecesse logo então, não tinha mais a paciência de antes. Na verdade nunca entendera porque diziam serem os velhos mais pacientes, visto que ele era apenas mais cansado pra fazer alguma coisa.

Havia cerca de cinco pessoas no quarto. Três adultos sentados, conversando, e algumas crianças correndo ao redor da cama, gritando. Alguém teve a brilhante ideia de abrir uma das janelas, deixando uma brisa gelada entrar rapidamente. Lembrou-se então do seu tempo na lavoura, sol nascendo ainda, aquela mesma brisa, seu irmão mais chegado falando da vida na cidade, suas irmãs colhendo algodão...

De repente, estava deitado em sua antiga cama de palha, que, estranhamente, era agora mais macia. Sua mãe, com um vestido manchado de café, o acordara. Era hora de se levantar. Vestiu a camisa, correu pra cozinha. Não podia acreditar! Todos ali, conversando, como se nunca tivessem saído daquela mesa enorme. Sentou-se calado, apenas observando-os, como se no mundo inteiro não houvesse coisa melhor para se ver. Mirou o rosto de sua mãe brilhando, olhando de volta. Era um daqueles rostos brancos, redondos, capazes de acolher qualquer pessoa. Viu seu pai, sempre sério, seus seis irmãos, suas quatro irmãs. Meu Deus! Todos ali.

Agora estava na sua cama dura de novo, as crianças gritando mais alto. Havia sonhado. Fazia tempo que não sonhava. Ouvia mais vozes que antes, o quarto também estava mais escuro, já era noite. Uma voz doce, melosa, fora aumentando de volume, chegando cada vez mais perto, acompanhada de um corpo mirrado e perfumado. “Bença, Pai!”. Mais outros três “benças” seguiram o primeiro. Não respondera. A voz havia fugido da sua garganta. Além disso, não sentia vontade de conversar com mais nenhum daqueles presentes. E, ou não se importaram, ou entenderam, porque ninguém mais insistira. Pelo contrário, começaram a conversar entre si naturalmente, tranquilamente. Mesmo assim, queria cada uma daquelas pessoas ali e mais, se pudessem vir. Que estivessem apenas presentes.

Passara-se um bom tempo e só então percebera que não havia se movido o dia inteiro. Mas nem sentiu necessidade ou vontade. Mesmo que quisesse, tinha a forte sensação de que seu corpo não obedeceria, como se tivesse escolhido passar o dia inteiro inerte, descansando naquela cama de pedra. Como se já não fosse mais seu, sua parte. Concentrou os pensamentos em sua família inteira, queria vê-los de novo. Já conseguia lembrar-se de cada mínimo detalhe, pequenos gestos de cada um, o jeito de falar do seu pai, o modo como ele gritava pelas vacas magras na hora da ordenha. Sua memória nunca fora tão forte assim, nem nos seus melhores anos. E uma certeza de que tudo era possível o invadira de uma forma muito forte. Sentiu-se verdadeiramente invadido. E feliz.

Estava sem fôlego por dois segundos apenas. Procurou o ar, mas não havia. Puxava-o com força, desesperadamente, mas nada vinha. Demorou algum tempo pra perceber que não precisava daquilo. Que não precisava de ar. Desistiu daquela luta estúpida. Que coisa boba, ar. O colchão já não era mais duro. Era leve, era como nada. As vozes outrora estridentes estavam desaparecendo, todas elas. Conseguia distinguir apenas uma mais forte que gritava algo parecido com um choro desesperado. Era a única coisa que o distraía naquele estado de alívio, quase alegria. Mas depois de um tempo até aquele choro foi desaparecendo. Percebeu que estava indo embora. Era chegada a sua hora. Para onde iria? Se é que iria a algum lugar. Esperava que alguém apagasse as luzes e sua consciência desaparecesse. Era mais provável que assim o fosse. Mas, incrivelmente, as luzes foram ficando mais brilhantes, e não havia o menor sinal de que fossem ser apagadas. Sua consciência, por outro lado, estava tão viva, e tão rápida, que até se surpreendeu. Era uma sensação de liberdade, de intangibilidade, num lugar que não se parecia mais com seu quarto. Não estava mais deitado, tampouco sozinho. Havia outros, muitos outros, e todos o observavam bondosamente. Uma silhueta familiar foi se aproximando, prestes a envolvê-lo. Mais perto, mais perto... Mais perto. Aquele rosto doce de novo: sua mãe. Por um instante que não se acabava mais, toda a sua vida fazia sentido. E uma ideia também constante, isenta de qualquer dúvida, de que nem tudo que é velho é ruim, que nem tudo que morre é velho, mas que tudo que é velho morre.
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