Artigo | Psiquiatra João Adolfo Mayer comenta sobre os efeitos destrutivos do crack


Em meados da década passada a sociedade teve contato com o crack, denominado de "pedra" pelos usuários em nosso meio, e consumido por inalação. É uma droga feita a partir da mistura de cocaína com outras substâncias tóxicas como bicarbonato de sódio, éter, acetona, querosene, ácido sulfúrico, ácido clorídrico, amoníaco e gasolina, entre outras, usadas com a finalidade de potencializar seus efeitos, contribuindo, contudo, para aumentar a toxidade da droga e o lucro do seu tráfico. Pode-se afirmar que o crack é uma forma impura da cocaína, e não um subproduto. Ou seja, o crack não é uma nova droga, mas um novo método de consumo e preparo da cocaína. Seu uso leva rapidamente à dependência física e psíquica. Seu preço é bem menor, mas em médio prazo traz conseqüências sociais, bem como seqüelas físicas e mentais mais graves do que as da cocaína pura (pó) e, na maioria dos casos, de caráter irreversível.

As substâncias químicas contidas na fumaça resultante da queima da pedra de crack chegam ao sistema nervoso central (SNC) em dez segundos e seus efeitos duram de 3 a 10 minutos. Entre os efeitos agudos produzidos temos euforia (alegria exagerada) após a qual surgem depressão, ansiedade, irritabilidade fácil, insônia e inquietação motora, que levam o usuário a buscar novamente a droga para aliviar o mal-estar vivenciado. Não raro ocorrem alterações perceptivas sob a forma de alucinações e surgem idéias de perseguição.

Nos usuários já dependentes o crack eleva a temperatura do corpo, podendo ainda causar acidente vascular cerebral, infarto do miocárdio, complicações pulmonares graves, destruição de neurônios e degeneração da musculatura do corpo, o que dá aquela aparência característica (esquelética) aos indivíduos, com ossos da face salientes, braços e pernas finas e costelas aparentes. O crack inibe a fome e o sono, de maneira que usuários dependentes ficam sem dormir por tempo excessivo, e só se alimentam quando não estão sob o efeito da droga havendo, em conseqüência, perda de peso e emagrecimento assustador. Tudo isso pode deixar o dependente fragilizado e doente de forma orgânica e psíquica. Embora gere menos lucro para o traficante do que a cocaína pura, o crack, levando mais rapidamente o usuário à dependência, garante um mercado cativo de consumo, uma escravização do dependente ao traficante ou fornecedor, e um caminhar rápido para comportamentos criminosos e morte.

Quanto mais cedo se detecta a dependência química por parte do usuário de crack, maior a possibilidade de que intervenções terapêuticas possam vir a obter algum sucesso. Com este intuito, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Associação Psiquiátrica Norte-Americana (APA) estabeleceram critérios para o diagnóstico da dependência ao crack visando um diagnóstico precoce desse transtorno, de enorme custo individual e social.

Quais são tais critérios indicadores de dependência à droga supracitada? Forte desejo ou compulsão para consumir a substância; dificuldade para controlar o comportamento de uso em termos de início, término ou níveis de consumo; síndrome de abstinência quando o consumo da substância cessa ou é reduzido, o que é evidenciado por ansiedade, irritabilidade, agressividade intensa, insônia, idéias de perseguição e alucinações, entre outros.

A tolerância ao uso de crack se faz presente, de modo que doses crescentes desta substância são requeridas para alcançar efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas. Abandono progressivo de prazeres ou interesses alternativos em favor do uso da droga, como também aumento da quantidade de tempo usando o crack ou para se recuperar dos seus efeitos ou, ainda, em sua busca para utilização imediata, compulsiva e fora do controle da vontade. Há persistência no uso da substância, a despeito de evidências claras de conseqüências manifestamente nocivas e graves, tanto a nível individual quanto social.

Difícil é a demarcação do limite tênue que separa chamado "Abusador de Crack" do "Dependente de Crack". O diagnóstico de Abusador só pode ser feito quando a dependência não se encontra presente. Este diagnóstico focaliza fundamentalmente o consumo problemático e recorrente do crack, ou seja, o indivíduo que apesar de ter comprometimentos sociais, médicos, psicológicos ou legais, mantém seu uso por período mínimo de um ano (12 meses), mesmo ainda não sendo dependente (por não apresentar os sintomas descritos para a dependência descritos acima). Esta pessoa geralmente tem um menor impacto da droga sobre sua vida (representado por conseqüências geralmente mais brandas do que na dependência), porém caso não seja submetida ao mesmo tratamento que o dependente terá (quase que) infalivelmente o destino da Síndrome de Dependência. O tratamento do indivíduo usuário de crack é tido como um desafio diário, tendo em conta a pouca adesão do abusador ou dependente ao tratamento por não o achar necessário, a rápida e intensa dependência que esta droga produz, freqüentes retornos ao uso do crack, haja vista a "fissura", isto é, o intenso e de difícil controle, por parte do usuário, do desejo de voltar a usar a droga, bem como a deterioração física e mental de progressão acerada e as decorrentes implicações sociais e legais que o uso desta droga ilícita acarreta. Além disso, a maioria das famílias de usuários não tem condições de custear tratamentos especializados de boa qualidade, nem de conseguir vagas em clínicas assistenciais de caráter público, as quais nem sempre se prestam para tal fim.

A melhor forma de tratamento dos pacientes abusadores ou dependentes do crack ainda parece ser objeto de discussão entre especialistas. Psiquiatras, em sua maioria, posicionam-se a favor da internação compulsória em casos graves e urgentes, em clínicas especializadas, com os objetivos de desintoxicar o paciente, tratar os sintomas da abstinência e outras enfermidades associadas ao uso do crack, como também tentar conter a compulsão da volta ao uso desta droga. Ao lado da psicoterapia individual, de grupo, da ocupação de varias horas do dia em atividades orientadas ao alívio da síndrome da abstinência e da "fissura" também se faz necessário o uso de ansiolíticos, de antidepressivos, de neurolépticos ou de estabilizadores do humor na maioria dos casos. Após a alta do paciente da clínica especializada, deverá ser dada continuidade ao tratamento em nível ambulatorial, com enquadramento rígido quanto ao não uso do crack.

A participação dos familiares do dependente em grupos de apoio e de orientação é fundamental nesta tentativa terapêutica de mantê-lo distante do crack. Salientamos que o abandono ao tratamento é alto, assim como o retorno ao uso da droga aqui discutida. Freqüente também é a morte por diversas causas orgânicas associadas ao consumo da substância, bem como por assassinato decorrente de brigas e de outros comportamentos anti-sociais assumidos. O modo de vida do usuário do crack o expõe a ser vítima ou fazer vítimas (criminalidade), muitas vezes e infelizmente levando-o a um fim trágico.
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