Artigo | O taxista de sete vidas


Eu nem gostava de gatos e nem pensava neles quando entrei naquele táxi que me esperava na frente do prédio do jornal onde eu trabalhava. Saí correndo, sentia o crachá chacoalhando no peito e tilintando junto aos botões da blusa que eu usava na tentativa de parecer séria. Bati a porta do carro e num ato quase mecânico disse o caminho, sem prestar muita atenção no motorista ou levantar a cabeça enquanto encaixava o cinto. Pensava o tempo todo nas quatro laudas que o editor de economia me pediu e imediatamente me vinha à mente a imagem do cursor piscando na terceira página, parecia jamais passar disso.

O motorista zerou o taxímetro. Foi só apontar a pequena máquina com o indicador da mão direita... a partir daí desviei todas as atenções no jornal, nos números da matéria, nas perguntas que faria ao entrevistado ou qualquer outra coisa que não fosse aquela mão. Vi que as pontas dos dedos dele tinham cicatrizes muito recentes e ainda cheias de pus. A carne cortada parecia não querer se juntar aos outros pedaços de dedo e formar uma ponta nova. Era um rachão, como se tivesse exposto ao sol pra ressecar e faltasse naquela parte de dedo umidade suficiente para ligarem-se umas as outras. Não fosse o pus, nada ali tinha brilho, apesar da carne esticada na tentativa de cobrir os pedaços de carne vermelha. Acho que aquilo latejava um bocado. Descansei a pauta sobre minhas pernas para desviar o olhar, provavelmente fiz uma careta e imaginei o cheiro das perebas enquanto parei por cinco segundos para interpretar as feridas e então olhei para o rosto dele.

Se o seu Gilvan Zeferino da Silva, 56 anos, havia notado a minha falta de discrição, reagiu me dando um ótimo exemplo e disfarçou bem. Lancei um segundo olhar para ele, pressionei os meus lábios na tentativa de ficar caladas, mas como sempre, não consegui. Comecei a perguntar coisas idiotas. O caminho não ia ficar mais longo por isso e eu precisava mesmo distrair minha cabeça enquanto pensava no atraso na entrevista, na pressa, na fome, na minha insegurança. O entrevistado estava me esperando desde às 9h00, cheguei às 10h00 e a filha dele disse que ele havia saído cinco minutos antes.

Não importou, àquela altura eu já estava apaixonada pela história do taxista, pelos dedos cortados, pelo bigode que disfarçava a falta de alguns dentes, nas rugas do rosto, no jeito como ele passava a marcha tentando livrar o machucado do dedo: estava mesmo ansiosa para entrar de volta no táxi e continuar minha conversa com seu Zeferino. O nome dele é bom, a história dele é boa e eu sentia necessidade de escrever sobre isso mais do que a matéria que o editor esperava.

Primeiro os pastéis, depois os assaltos

Seu Zeferino foi assaltado sete vezes, reagiu em todas elas, foi atingido com quatro facadas no ombro, três no bucho, um tiro 'soprou no meu queixo' e recentemente ganhou cicatrizes novas no pescoço e essas, da pontinha dos dedos, ao tentar se livrar da faca que ia cortar seu pescoço, se não fossem os dedos duros para aparta-lhe o caminho miúdo que se formou entre a faca do bandido e suas mãos salvando a si mesmo: os dedos eram o intervalo entre morrer ou escolher mais uma cicatriz para enfeitar-lhe o corpo já um pouco enrugado. Fez mais talhos e se manteve vivo.

Antes disso vendia pasteis ali na calçada das Damas, um colégio de freira que fica no centro de Campina. “Eu vendia 400 pastéis por dia, mas aí me tiraram de lá e me colocaram num lugar ruim, passei a vender só 100 pasteis e quebrei”, ótima oportunidade para virar taxista, perder um carro num roubo, andar com uma barra de ferro ao lado da porta com medo de bandido e rir, acima de tudo, ao contar as histórias que narrava enquanto freava bruscamente. “Já dei pisa em bandido. Fui assaltado sete vezes e reagi em todas, dessa última vez mesmo, desci do carro e corri atrás dele. Mas ta vendo esse sapato? (Estávamos parados no sinal, aproveitei para abaixar a cabeça e ver o sapato, como o dedo dele apontava: aqueles calçados pretos com uns birimbelos pendurados na frente). Pois é, esse sapato é ruim de correr”, respondi que “Ah”, somente, e esperei ele continuar.

Era sábado de carnaval, 20h00, pegou uma corrida. O passageiro fez questão de sentar no banco de trás e mandou que seu Zeferino fosse até o bairro do Catolé. Chegando em um lugar esquisito, o homem tirou uma faca “de não sei de onde danado foi” e meteu na goela de seu Zeferino. “Pensei que ia morrer, a única solução foi meter a mão na faca. Eu fui empurrando, o sangue saindo e eu empurrando”. A essa altura eu fazia caretas por achar que tinha razão suficiente. Quando mais minhas caretas se enfeiavam, mas ele se preocupava em mostrar como foi, rindo da minha cara. “Aí pronto, minha mão ficou assim. Pense num susto, tô trabalhando assombrado”.

Eu, ainda de careta na cara, voltava ao jornal. “Aí, deu R$ 34, 75”. Preenchi o carnê, assinei e me despedi daquele homem pedindo um favor e dando um aviso idiota. “Ei, seu Zeferino. Deixa de brabeza. Tais pensando que é gato, é? Que tem sete vidas? Já gastasse tua cota!”, ao que ele respondeu rindo besta da minha leseira “Olha aqui pra eles e pra os ladrões (mostrou-me uma barra de ferro que escondia debaixo do tapete). Acho que vou vender pastel, é menos perigoso”. Gargalhou, deu partida e foi embora...

Por Ligia Coeli
Leia mais sobre: ×